CONTOS DE ANTONIO KLEBER MATHIAS NETTO

terça-feira, 13 de outubro de 2009

MISÉRIA POUCA É BOBAGEM

Era muita miséria! A prole, amontoada no pequeno quarto, ouviu a mãe proclamar a hora de dar rumo àquela desordem. Cedinho, botou-os para fora de casa. Fossem os moços para o lixão; as moças, às faxinas!
Roberval mandava pouco. A filharada constituía-se em exército rebelde. Atendia à mãe por capricho. Sustentavam o brocardo: Mãe é mãe, o resto é conversa!
Durante muitos anos, sobreviveram ao custo do emprego de Roberval, cobrador de ônibus. Juntava o pouco que ganhava com o da mulher, lavadeira, e tocavam a vida que Deus dava. As crianças, enquanto pequenas, empurravam com a barriga. Acontece que cresceram: O mais novo com 13, a mais velha com 20, os seis filhos já estavam adultos para a vida. No entanto, amontoavam-se no pequeno quarto, como antigamente, quando duas camas abrigava-os e, com jeitinho, ainda sobrava lugar.
Que miséria estuporada! Parecia filme sobre desgraça! Mas seguiam!
Certo dia, Glorinha chegou em casa cabisbaixa, lamentando os azares e os tropeços.
- Que houve, filha?
- Estou grávida, mãe!
Alvoroço geral, até que o pai de Glorinha pediu silêncio e disse:
- Seja lá como for, tira esse filho! Juntamos um dinheirinho para o aborto. Conheço um doutor que é bom nisso!
Assim foi feito. Junta daqui, junta dali, conseguiram o valor correspondente ao preço solicitado pelo aborteiro. Para lá se dirigiram Glorinha e os pais.
Aguardando a vez, ali estava o retrato da mais triste desolação. Pai, mãe e filha tentando se afastar de outro problema, empurrados pela miséria. Uma menina engravidar não significava situação de ordem moral, mas material. Seria menos uma filha a trabalhar e mais uma boca a sustentar.
- Dona Glorinha!
A moça entrou. Menos de cinco minutos após, homens armados entraram no consultório, dando voz de prisão aos que ali se encontravam. Encurtando a história: Glorinha estava na maca; submetia-se aos preparativos para o aborto. A polícia interrompeu o processo.
Resultado: pai, mãe, filha, médico e enfermeira respondem a processo pela prática de crime de aborto, na forma tentada. Quase todos os meses enfrentam demoradas audiências no fórum. A primeira vez, foi o interrogatório. Depois, oitiva de testemunhas. Decerto, pelas provas, submeter-se-ão ao crivo do Tribunal do Júri, por tratar-se de crime contra a vida.
Ao nascer o neto, Roberval tomou um gole de café, acendeu um cigarro e lascou:
- Fiquem tranquilos. Na atual situação, desesperar é doidice. E mais: eu e a mãe de vocês já estamos mais para o lado de lá. Se o processo der cadeia, não se apavorem. Teremos comida e acomodações dignas. Soube que o pessoal dos direitos humanos fiscaliza a situação das penitenciárias no Brasil. A coisa vai melhorar! Ah, esquecia: hoje, pela manhã, Gildinha – a irmã mais nova - me procurou. Também engravidou! Alguém tem idéia melhor do que a do aborto? Se não, tá na hora de enfrentar o mundo, caso contrário não haverá feijão no almoço. Afinal, suas galinhas de uma figa - disse o velho em bom desabafo -, miséria pouca é bobagem! Vamos em frente que atrás vem gente!

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O ACIDENTADO

Era um bóia-fria chegando da lida. De súbito, viu-se lançado fora da estrada. A marmita e um dos sapatos ficaram no acostamento; tomara-lhe desagradável tontura.
Noite, bruma e silêncio, trilogia desassossegante para o pobre homem, agora inerte no valetão úmido e escuro, obra de um motorista imprudente.
Tinha medo de cobra, de animais peçonhentos em geral. Mas naquele instante as dores no corpo e o sangue tomando-lhe o abdome não lhe permitiam medo ou nojo.
Após minutos aflitivos, decidiu gritar por socorro. A hora noturna ia adiantada, mas, decerto, chamaria a atenção de quem passasse na estrada. Entretanto, quem passaria àquela hora por ali? Lembrou-se do Nico, do Inácio, do Pavani e do Gentil, amigos que permaneciam até tarde no bolicho da Suzana, bebendo e comendo salame. Será que o ouviriam, estando bêbados? Ao tentar o primeiro pedido de socorro, sentiu intensa dor no peito. Imaginou fraturas nas costelas. Notando a perna direita inerte, logo se aquietou. Aliás, não movia palha. Partira a canela. Fratura exposta.
O tempo escorria num vagar angustiante. Raros veículos cruzavam. Se chegasse ao acostamento, o socorro ficaria fácil! - Pensava o pobre diabo, tiritante de frio, dor e medo.
Lembrou-se da mulher, dos filhos, dos quefazeres. O que diria o patrão pela manhã, diante de sua ausência? Estava há pouca distância de casa; uns cento e cinquenta metros.
Uma chuva fina e impertinente incomodava-o. O adensamento da neblina tornava o ar pesado e a escuridão espessa. Os raros faróis transmitiam-lhe essa percepção.
Empapado de sangue, doía-lhe da cabeça aos pés. Não detinha os gemidos; na sua imaginação, serviam-lhe como alternativa, caso alguém os ouvisse da estrada.
Aqui e ali, praguejava o atropelador, por não ter prestado socorro.
A hemorragia debilitava-o. Sobre o mato molhado e o chão lamacento, sentia-se perdido. Não conseguiria socorro antes do amanhecer. Diante do quadro, optou pela imobilidade, para não complicar a situação que se agravava.
Perturbava-o a viscosidade do sangue. Percevejos, ratos, cobras, baratas, enfim, nada o apavoraria tanto, como a impossibilidade de ver-se socorrido.
Acentuava-se o desespero. Suplicava a Deus que o encontrassem.
As dores, àquela altura, eram lancinantes. Uma friagem sintomática tomava-o dos pés à cintura. À sua determinação de ficar imóvel, juntou-se uma paralisia compulsória, decorrente das múltiplas lesões. O processo hemorrágico tramitava implacável.
Ao cessar a chuva, a madrugada se despedia. Sobre o valetão, dissipava-se a neblina. Um cheiro nauseante de pântano inundava ao redor. Mudara a direção do vento. Era cheiro de peste. Uma nuvem de mosquitos aporrinhava-o, mas nada podia fazer. Ao sangue escorrendo de várias partes do corpo, eles preferiam o método tradicional da picada para alimentar-se. Porém, salvante a irritação causada pelos zumbidos, nada mais importunava; grande parte da superfície de seu corpo tomara-se de aflitiva insensibilidade.
Não sabia das horas, mas um galo cantou. Era seu carijó, com certeza! Sua mulher levantaria para fazer café, fritar bolinhos de farinha de trigo e ajeitar os meninos para a escola. Os agricultores caminhariam pelo acostamento, rumo às roças. Renovavam-se as esperanças!
Como por magia, pairou sobre o moribundo encantadora serenidade. Abriu os olhos, pálpebras leves, e divisou a estrela matutina. Linda, coruscante! Enfim, aproximava-se o resgate.
Os pensamentos viajavam. No cosmo, penetrava as infinitudes estelares. Estava feliz com as novidades prazeirosas. De repente, sentiu-se removido para uma ambulância. Ele pedia cuidados, pois as dores eram muitas. Mas ninguém o ouvia. Em sua viagem, recém chegara à primeira estrela.

O SERTÃO VAI VIRAR MAR. E VIROU

Balduíno, sertanejo forte! Crescera sob a vergasta das estiagens prolongadas, remoendo as adversidades da caatinga, cujo solo esturricado prometia dor e desânimo.
Ainda jovem, rendeu-se ao sonho. Casou e partiu em busca da realização familiar. Rosa fora seu primeiro e único amor. Depois - só Deus sabe como! - plantaram um rancho de pau-a-pique às margens do leito seco de um rio. Os anos trouxeram três filhos; com eles, o sentido amargo da desilusão. Dois faleceram ainda bem novos, sob a peçonha da fome.
O leite de Rosa não passava do colostro. Ao depois, era água com gotas de limão, adocicada com mel extraído da raiz do xiquexique. Um pouco mais crescidinha, a criança recebia pão de macambira, bromélia de duras e espinhentas folhas, sem qualquer valor nutritivo. Também se comia pão bró, alimento grosseiro feito de ouricuri, sem sustança qualquer. Os filhos, magérrimos e desnutridos, ganhavam da vida pouquíssima estrada.
Era seca braba! Balduíno não lembrava da última vez em que a roça lhe rendera algum feijão-de-corda, milho e macaxeira. Inclusive, pensou em partir para a cidade grande, visando salvar o filho restante. Mas, ao divisar nuvens, as esperanças se renovavam.
- O céu ainda se tomará de muitas nuvens! Choverá vários dias e agradeceremos a Deus pela dádiva! Os rios transbordarão; a terra encharcará. Teremos comida e seremos felizes!
Eis a reação de Balduíno, diante das súplicas da mulher para sair daquele inferno, onde até os bichos mais resistentes se negavam a viver.
Certa madrugada, trovejou. Eram muitos trovões. Balduíno saiu para o terreiro e rezou. Agradecia aos céus. Lembrou a Rosa sua profecia. Não demorou, relâmpagos e chuva! Era água que Deus dava! Quanto mais chovia, mais Balduíno orava, agradecendo ao Criador.
Agora, ele e a mulher dançavam no terreiro sob a chuva torrencial. Na sua imaginação, brotavam dos campos verdor exuberante. Antevia milharais e mandiocais vicejando; paióis abarrotados. Galinhas, porcos e vacas traduziriam a fartura no sertão. Pensou nos filhos que morreram sem assistir àquele milagre.
- Não lhe disse, mulher, que um dia Deus olharia por nós?
- Você tinha razão, Balduíno. Eu duvidava!
Dançavam e a chuva caía. Parecia um dilúvio, tanta era a água e os trovões. Balduíno, que construíra o barraco às margens do leito seco de um rio, agora ouvia seu marulhar.
- Ouça, Rosa! É o rio correndo no sertão!
- Sim, Balduíno! Água não nos faltará! Deus ouviu nossas preces!
Após a festa e os agradecimentos, retornaram ao casebre. Constataram com indiferença as muitas goteiras. Balduíno lançou mão de uma garrafa de aguardente, cujo conteúdo tomava em doses homeopáticas. Dessa vez, tomaria goles fartos, comemorando a chegada de um novo tempo. A luz da lamparina tremulava, tal a rebeldia da tempestade. Nonatinho, assustado com os clarões, embrulhou-se nuns trapos sobre o catre. Rosa estava feliz. Recostou-se à espera do amanhecer, que tardaria. Balduíno apagou o lume e se deitou ao lado de Rosa. O acontecimento despertou desejos. A vida desgraçada estava por um fio. Doravante, tudo seria diferente.
Lá fora, chuva grossa e incessante. O barulho ensurdecia. Por volta das quatro horas, Balduíno e Rosa despertaram assustados. Tudo tremia. O rancho desmoronava!
- Acuda-nos, Nosso Senhor! - Suplicou Rosa, diante da tragédia que se avizinhava.
Naqueles ermos, foram as últimas palavras ouvidas. O rio caudaloso subira mais e mais, levando tudo de roldão, arrastando a casa como uma folha. Com ela, o esperançado Balduíno, sua mulher e seu filho.
Durante dias seguidos, a chuva se manteve intensa. No local onde moravam, o nível do rio subira mais de dois metros, encenando temível corredeira.
Uma outra profecia substituíra-se a de Balduíno: "O sertão vai virar mar." E não deu outra. Uma vez mais a miséria pagara a conta pelos excessos da natureza.
Ninguém percebeu o sumiço da família. Miséria nunca teve endereço certo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O TUXAUA

O mano Zequiel não descansava. Clinicava pelas bandas de Casimiro de Abreu, mantendo pacientes psiquiátricos no distrito de Barra de São João. Era corrida doida! Às segundas e quartas, atendia a praça de Cabo Frio; garantia a semana psicanalisando clientes cativos. Fala mansa, estribava-se na medicina naturalista, analisada sob ângulo muito pessoal, cujos resultados terapêuticos rendiam-lhe boa fama na Região dos Lagos.
Não era de laçar com sovel curto. Nos embaraços, tinha saída pra tudo. Troçando, fala-va tão a sério, que o interlocutor ficava de queixo caído. Zequiel mantinha a peta por dias seguidos. Dizem que há gente segurando engodos como verdades até hoje!
Numa dessas, um colega seu, também psiquiatra, assumiu funções na Secretaria de Saúde de Rio das Ostras. Conheceram-se num dos encontros regionais de psiquiatras, ocasião em que Zequiel soube da preferência naturalista do colega, dedicado ao estudo dos vegetais. Apanhou Zequiel na feição, pois este era aficionado pelo estudo das propriedades medicinais das folhas. Seu amigo, de nome Salvatore, ficou feliz, sabendo-se tão próximo de colega seguidor de suas mesmas linhas terapêuticas para tratar doenças mentais. Também ele comungava com a máxima: “Manicômio não é lugar para enfurnar maluco”.
Decorridos alguns meses, mais íntimos, Salvatore revelou um segredo a Zequiel: desejava conhecer os mistérios da floresta, as manhas que a envolviam e a potencialidade das folhas na cura das doenças. Foi além: ansiava transformar-se num tuxaua, obter os conhecimentos de um chefe indígena. Diante da surpresa de Zequiel, Salvatore registrou: tuxaua só no conhecimento!- Citadino, não diria outra coisa. Logo Zequiel o convidou a visitar seu sítio em Casimiro de Abreu, localizado no meio de uma floresta muito bem preservada.
Numa manhã de sábado, Zequiel, vindo de Cabo Frio, apanhou Salvatore e esposa em Rio das Ostras, e rumaram para o sítio.
- Sairás formado em Tuxaua, conhecendo folhas, flores, frutos silvestres, pequenos e médios animais, aves, rios, noite, dia, alguns mistérios e muito mais.
- Que ótimo, Zequiel! É tudo o que quero!
- Após o almoço, partiremos.
Dito e feito. No início da tarde,dirigiram-se à cachoeira, onde se formava belo lago. Tomariam banho; o aprendizado incluía as “lições das águas”.
No meio do caminho, Salvatore revelou que tinha medo de raio. Zequiel o acalmou, dizendo-lhe que o tempo estava bom. Chegando ao lago, os cães latiram. Havia alguém nas proximidades. Zequiel se adiantou e, na primeira quebra da trilha, deu de cara com um sujeito estranho carregando uma mochila e assustado.
- Que houve, companheiro?
- Fomos atacados por uma onça, eu e meu amigo.
- Onça?
- Sim. Uma onça, com uma cabeça enorme!
- E ele?
- Trepou numa árvore! Não sei se ainda está vivo!
Salvatore e a mulher se juntaram a Zequiel e a tudo ouviram, ele de olhos acesos.
- É verdade, moço! Há muita onça por aqui! Surpreendo-me com a coragem de vocês! Eu conheço os caminhos. Safo-me bem diante dos inúmeros perigos. - Disse Zequiel ao estranho, ciente de que onça, por aqueles lados, só fantasmas de suas ancestrais.
- Já me vou. Procurarei ajuda para meu amigo.
Salvatore, assustado, estrilou.
- Por que não me falaste das onças?
- Não te preocupes. Se há alguma onça, não nos alcançará. Pulamos na água e nos salvamos. - Referiu-se assim, para testar a coragem do amigo.
Lá se foram os três para dentro do lago. Mas eis que, olhando para o céu, depararam-se com negras nuvens.
- Estranhas aquelas nuvens, Zequiel. – Disse Salvatore, feições estranhas.
- É verdade, Salvatore. Não se esperava chuva por estes dias. Mas as nuvens dizem o contrário.
Ao longe, roncaram os primeiros trovões. O tempo escureceu. Não demoraram os raios.
- Vou-me embora. Entre os raios e as onças, prefiro as últimas! - Dito e feito: Salvatore botou o pé na trilha. Sua mulher dizia a Zequiel que Salvatore só se acalmaria ao encontrar um pneu para servir-lhe de isolante.
- É verdade, Salvatore tem razão. Nada como subir num pneu nessas horas.
De imediato, Zequiel e Vera foram atrás de Salvatore, que, àquela altura, corria mais que lebrão assustado.
Na metade do caminho, Salvatore divisou um pneu velho de trator jogado à margem. Não contou até três para nele subir e ali ficar, até que os companheiros chegassem.
- Olá, Salvatore! Mais calmo? - Perguntou Zequiel.
- Sim. Agora não corro perigo.
Vera, aproximando-se, deu um grito.
- Salta daí, Salvatore! Há uma cobra sob o pneu!
Uma enorme cobra! A cabeça, pressionada pelo corpo de Salvatore, escorregou para fora, ficando visível.
- É cobra para mais de metro e meio! - Gritou Zequiel.
De pronto, Salvatore correu em direção à cerca, disparando rumo ao campo do vizinho, evidenciando ter mais medo de cobra do que de raios e onças... juntos!
Ao chegar em casa, Zequiel, vendo Salvatore encolhido na carroça, observou:
- Amigo, estás reprovado no vestibular para índio! Raios, cobras e onças fazem parte do currículo de formação dos Tuxauas. Ao demais, aquela cobra se tratava de uma jibóia morta por aquele malandrão encontrado próximo ao lago. Pensou que fôssemos do IBAMA e aplicou aquela mentira, dizendo que levaram uma corrida de onça e que o amigo subira numa árvore. Tudo mentira! Semana que vem, recomeçaremos. Tens direito a uma segunda época!
Salvatore caiu fora. Largou a idéia de ser tuxaua. Era coisa de maluco.

OPÇÃO


Sentado na calçada, João recebia o peso do silêncio madrigal. A neblina ajeitava-se nas ruas quase vazias. Como fantasmas, ninguém dava sinal de seu destino.
Fazia frio, mas ele suportava a intempérie. Havia um coração descompassado, sofrendo dores de paixão. Não se desvencilhava do nó na garganta. Eram mulheres trazendo cargas de melancolia para suas horas de solidão! João se aborreceu com a causa de sua depressão.
Um cão atravessou a rua; um pio acenou maus presságios; a gata no cio encantava o fio do muro. A madrugada indicava caminhos aos personagens, inclusive ao mendigo.
Inúmeros fatos eclodiam diante de um João melancólico. Era um filme sem enredo, estampando situações de pouco ou nenhum significado aos seus olhos indiferentes. Para ele, a prostituta convocando ao prazer tinha lugar; mas não esquecera da mulher envolvente do dia anterior.
Onde andaria? Ah, como saber? Interessava o sentido de sua dor e ir para casa dormir. Mas a realidade não funcionava daquela forma. Há muita armadilha no cérebro. Cientificara-se de que o homem criava recursos masoquistas, para afrontar fatos e atos espinescentes.
Desempregado, credores mordiam-lhe os calcanhares; os poucos bens, todos penhora-dos! Fazer o quê? Ao redor, constatou a realidade crucial chegando com o tempo. De fato, havia indiferença de sua parte em relação ao mundo exterior; bloqueara-o um oceano de dívidas.
Devagar, passou a entender o artifício que o envolvia, enchendo sua imaginação de possibilidades amorosas. Só que afundava em tristeza. Já antes, observara a si mesmo a banalidade da causa que o fazia macambúzio. Sentia um artimanhoso processo afastando-o da realidade, levando-o para longe de suas responsabilidades.
Sentado no meio-fio, contemplava a paisagem, perdendo-se sob a fantasia de uma pai-xão consumidora, que logo se consumia como o éter, fazendo sua cabeça vazia. Transtorno puro! Havia problemas subjacentes que não combinavam com paixão, madrugada e sonhos.
De súbito, espantou-se de vez com o volume das necessidades imediatas, mortificando-se com a série de compromissos para o dia seguinte, alguns irresolúveis no momento. Enrodilhara-se na insolvência; não havia perspectivas de soerguimento econômico. A essa altura, mãos no rosto, olhos fechados, passeou sobre as desgraças envolventes, incluídas, aí, a família esfacelada, o abandono dos amigos e o crédito suspenso.
Sob tais pesos, enlouquecia, quando uma brisa soprou seu rosto. Abriu os olhos e viu a neblina se dissipar, desnudando a rua. Um cenário de luzes mostrou-lhe detalhes coruscantes. Os pensamentos transmudavam-se, como num passe de mágica. A imagem da mulher festejada postou-se diante dele; sua consciência ingressou na trama e trabalhou na escolha de caminho menos íngreme. Olhou para o telefone celular.
Passo a passo, concluiu que, naquela quadra difícil, a melhor opção estava no entregar-se à paixão, acomodando-se à válvula de escape da imaginação. Sofrer de amor, sem dúvidas, consolidava-o no processo do viver, fosse qual fosse o engodo articulado pela imaginação para submergi-lo no oceano da alma.
O céu se limpara. Restabeleceu-se a indiferença em relação aos

acontecimentos.
Restou-lhe o caderno e um poema.
O último verso impulsionou-o a andar em direção à sua casa.
Afinal, passara a hora de dormir.


REVIVÊNCIA

Roberval passeava pelo imenso e antigo jardim da fazenda, construído pelos avós. Bancos de pedra bem trabalhados, flores variadas, pequeno chafariz e gorjeio da passarada.
Com o tempo, o abandono assenhoreou-se do local. Árvores enfermiças, arbustos indefinidos, canteiros desfeitos, inço, teias de aranha, formigueiros, enfim, pouca coisa lembrava o jardim de outrora.
O mato emergia agressivo no caminho de pedras por onde os velhos trilhavam pela manhã, segundo contara-lhe a mãe. Só os bancos sobreviviam perfeitos. Roberval sentou-se num deles, perdendo-se nas horas do passado distante.
Conhecera os avós, ambos já idosos. Novos, só em fotografias. Num momento, trouxe-os à lembrança, dando-lhes vida; colocou-os num jardim restaurado pela imaginação. No banco à frente, Roberval materializou-os de mãos dadas, românticos, inflados por paixão arrebatadora, sob terna troca de olhares.
Nas férias e fins de semana, ao tempo de criança, Roberval descia e subia pelas alamedas, rompendo caminhos na mata e no pomar. Não se detinha aos detalhes do jardim, da fonte, dos desenhos formados pelos canteiros floridos, dos arbustos, dos belos bancos e tudo o mais; suas brincadeiras eram um exercício de dar asas à liberdade.
Roberval entregara a juventude aos estudos. longe da fazenda, formando-se em agrono-mia. Adulto, trabalhou em várias instituições. Aposentado, dedicou-se a escritório de projetos agropecuários.
Com a morte do pai, logo secundada pela da mãe, retornou à fazenda. Filho único, casado e com dois filhos, assentou morada na propriedade, prosperando na pecuária. Um dia, doença grave levou sua esposa. Três anos depois, sucumbia a filha, vítima de complicações de parto. Os infortúnios culminaram com o trágico acidente aviatório na Europa, arrebatando-lhe o filho, a nora e dois netos.
Ficara só. A solidão integrou-o ao velho jardim. Ali, não sentia sua mãe brincando pelas calçadas de pedra, mas notava a presença dos avós sob o olor da mata e das flores, ao canto dos pássaros.
Um sentido de revivência tomou sua alma. As brisas sacudiam as mechas encanecidas. Ideais, pensamentos e sonhos introverteram-se. Havia séculos de ascendência gritando em sua memória.
De repente, do silêncio, brotou o murmurejar da água na fonte; as flores vicejaram; a mata se encheu de sons e cores; mãos amigas puxaram Roberval para uma dança de roda.
Altas horas da noite, Roberval respirava. Mas não despertou às sacudidelas do capataz. Aliás, nunca mais despertou.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

UMA ONÇA EM MEU CAMINHO

Zé da Casquinha saía cedinho para pescar. Gostava de percorrer as margens dos igarapés-mirins do Baquiá Grande, lugarejo há algumas horas de barco de Macapá, Capital do Amapá, onde, não raro, matava peixes graúdos que Rosinalda preparava com arte e zelo.
Ele nasceu ali, no ventre da selva. Pais e avós também. Os olhos riscados indiciavam genes europeus, mas, diferente da gente da cidade, disso nunca cuidara. Não lhe retiraria nem traria mais coragem para enfrentar os perigos da floresta.
Quando porreteava cabeça de tucunaré, soltava exclamação de espantar cardume: “Eta, bicho bom! Tu não me escapa, diacho!”
No entanto, ao perder a presa num golpe inexitoso, a fala diferia: “Diabo de peixe! Não me faça perder a paciência, que eu mergulho e te trago a tapa!” A seguir, franzia o cenho e atirava-se às remadas, sussurrando: “Qualquer hora, derrubo um pirarucu daqueles e ponho minha gente a salgá-lo. Então, descansarei por uns dias, comendo peixe com banana verde!”
Oito filhos sob sua dependência, alguns casados, não havia como fugir daquele destino. “Filho é filho, neto é neto e gato-açu é um bicho”, não cansava de dizer. Mas era feliz. Estava onde vivia na plenitude: no meio da selva. Nunca fora mesmo de muita gente à volta que não fosse da família. De vez em quando, rezingava com genro e nora. Também já não lhe davam bolas, de tão acostumados com seu mau humor.
Numa bela manhã, ei-lo feliz nos preparativos para mais um dia de pesca. Agora arrumava a fisga que lhe trouxera de Macapá o sr. Grimaldo, produtor de açaí na região do Baquiá. Sabia que era da necessidade do velho pescador tal instrumento. O pescado representava a base de sustento da numerosa prole.
Já com o pequeno barco em movimento, costeava a margem, dela não se afastando. De repente, sentiu que algo acontecia sob as águas. A superfície borbulhava. Não era cardume de piranha com a voracidade costumeira devorando alguma vítima, mas não era coisa pequena. Abriu um sorriso, pois ali se desenhava boa pescaria, ao gosto de seus sonhos. E logo naquele dia em que levara fisga nova! Logo enxergou o dorso de imenso pirarucu, preparando-se para lançar a fisga. De pé, deslizando o barco silenciosamente, já bem próximo da presa... vupt! Ao tempo em que a fisga penetrava o peixe, Zé da Casquinha ouviu forte rugido vindo da margem, bem próximo dele. Ainda de soslaio, deparou-se com imensa onça - tipo canguçu, a da cabeça grande - que, preparado o bote, lançou-se sobre o barco, garras e dentes afiados à amostra. Ato simultâneo, largou a fisga - cuja corda presa à vara amarrara à canoa -, lançando-se às águas.
O mundo parecia vir abaixo. Ao pular da canoa, agarrou-se na popa, enquanto olhava apavorado para o imenso animal equilibrando-se no meio da embarcação. A onça fitava-o cheio de ferocidade, mostrando caninos sequiosos. Durante bom percurso, este foi o cenário. Barco à deriva, muitos pensamentos convulsos se batoam na cabeça do velho pescador. “Valha-me, São Pedro!”, dizia baixinho aqui e ali.
Como seja quase certo que nenhuma desgraça vem desacompanhada de outra, eis que, da margem oposta, lançaram-se à água vários jacarés-açus, que ali - bela prainha - lagarteavam sob o sol da manhã. Pelo molde de lançarem-se n'água, Zé da Casquinha sentenciou: "Estão famintos!". Aí lembrou de seu pai, que não cansava de avisar: “Meninos, não esqueçam de afastar porcos, patos e galinhas das margens do igarapé, principalmente nas cheias. O jacaré-açu, numa bocada, acaba com a sorte de qualquer ser vivente! Com fome, então, só Deus salva!”
“Estou frito!”, pensou o transtornado Zé da Casquinha, vendo aqueles dorsos escuros e limosos se aproximarem, ao mesmo tempo em que, bem próximo da canoa, centenas, talvez milhares de piranhas iniciavam a devoração do imenso pirarucu. O sonho que o alentara pela manhã esvaía-se nos dentes afiadíssimos do cardume. Sobre a família, fez apenas uma indagação: "O que será de Deusdete, Resolina e Charlenildo, os mais precisados da família?". No mais, não dava tempo para pensar mais nada.
Com o movimento do barco para a frente, levado pela corrente, parte do pirarucu ficou na superfície, preso à fisga. Era imenso! As piranhas provocavam o maior rebuliço, fervendo à volta do peixe, que se debatia para livrar-se de seus devoradores. Inútil. Grande parte de seu corpo fora consumida àquela altura.
Estava certo de que, dali, nem sua alma escaparia. Onça, jacarés-açus e piranhas formavam trilogia diabólica, fatal. Restava rezar, embora nunca aprendera reza que prestasse. A Ave-Maria e o Padre Nosso estariam de bom tamanho, pensou, mas não sabia sequer começar. Imaginou que boas intenções também levavam as pessoas para céu. Por isso, pouco ligou para sua ignorância religiosa.
Como Deus e o Diabo nunca estão muito longe um do outro, diante da movimentação dos jacarés e o barulho originado pelo fervilhamento das agitadas piranhas, a onça não perdeu tempo: saltou para a margem com especial habilidade, safando-se de também ser eventualmente devorada pelos jacarés e servir de sobremesa às piranhas. Talvez não desconhecesse o velho ditado: “Mais vale um passarinho na mão, que dois voando”. Não queria perder, de uma só vez, a presa e a liberdade. Garantiu-se de que, cedo ou tarde, abocanharia pescador menos ágil.
O primeiro impulso de Zé Casquinha, ao ver a onça pulando do barco, foi entrar nele para safar-se dos jacarés e das piranhas, que, àquela altura, já pinicavam feridinhas de sua canela. Decerto, o pirarucu não bastaria para atender a tantos glutões.
Naquele dia, Zé da Casquinha chegou em casa cheio de agrados a genros, noras, filhos e cunhados. Sobre a pescaria, deu de ombros, dizendo-se cansado da lida. Após, alardeou que, a partir da manhã seguinte, cumpriria trinta dias de férias!